O QUE É ESPIRITUALIDADE?
Frei
Betto
1-
O
que é espiritualidade? Eis uma pergunta que fiz a vida toda e ainda paira
inquieta em meu coração. É como o nome de Deus, tão vulgarmente pronunciado por
nós e, no entanto, impenetrável.
2-
Como
é mesmo que Ele se chama? Javé, Eloim, Adonai, Alá, Senhor? Ao conhecer uma
pessoa, nossa primeira curiosidade é perguntar seu nome. A segunda, quem é, o
que faz.
3-
Segundo
Êxodo 3,1-5, foi Javé quem tomou a iniciativa de ir ao encontro de Moisés, enquanto
este apascentava o rebanho de Jetro, seu sogro.
4-
Antes
de identificar-se pelo nome, Javé preferiu mostrar-lhe seu currículo: “Eu sou o
Deus de teus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”.
5-
Era
um Deus que tinha história, e essa história abrange os patriarcas hebreus: “Eu
sou aquele que é”. Puro verbo, ação.
6-
Êxodo
33,19: “Farei passar diante de ti toda a minha beleza”, mas se recusa a
mostra-lhe a face. Creio que aqui está a chave da espiritualidade. A beleza é
sempre atraente, sedutora, objeto de nossa incessante contemplação.
7-
As
palavras moldam a nossa interioridade. Por isso, toda experiência estética é
subjetiva. Conhecer a face de Deus é deixar que Aquele “que é” seja em mim.
8-
A
espiritualidade constitui o fundamento, a base, a motivação de nossa vida
interior, subjetiva. Dentro do cristianismo, existem várias famílias
espirituais: pentecostal, carismática, militante... no catolicismo, temos as
espiritualidades dominicana, beneditina, franciscana, jesuítica, das filhas de
Maria, dos congregados marianos, enfim, uma enorme variedade de tradições ou
motivações espirituais, nas quais cada um busca as suas referências. É o poço
onde cada um de nós se abastece na vida espiritual.
9-
A
espiritualidade é o nosso verdadeiro eu, que muitas vezes não conseguimos
vivenciar. Esse, eu, na verdade, é um Outro Eu que está sempre a apontar o rumo
certo de nossas vidas. Santo Tomás de Aquino dizia que, quanto penetro minha
interioridade em busca de mim mesmo, mais encontro um Outro que não sou eu, mas
é ele quem revela o meu verdadeiro eu.
10-
Não
se penetra a beleza de Deus impunemente. Antes de passar diante de Moisés, Javé
preveniu-o de que haveria de cobrir-lhe os olhos com a palma da mão “até que eu
tenha passado. Depois tirarei a palma da mão e me verás pelas costas. Minha
face, porém, não se pode ver” (Êxodo 33,22-23).
11-
O
profeta Elias “cobriu o rosto com um manto” ao sair da gruta ao encontro de
Javé (1º Reis 19,13). No evangelho de Mateus (17,1-3), Jesus, ao
transfigurar-se, “o seu rosto resplandeceu como o sol e as suas vestes
tornaram-se alvas como a luz”.
12-
É
curioso como Mateus encerra o relato: “Erguendo os olhos, não viram ninguém: Jesus
estava sozinho”. Não viram Deus, nem Moisés, nem Elias, que tinham
desaparecido. Jesus era a face visível de Deus. “Aquele que é” ali estava, o
Verbo feito carne. E, diante de Jesus, não se trata de cobrir o rosto, mas de
mudar a rota da vida.
13-
Qual
deve ser a nossa espiritualidade? Há muitas outras tradições religiosas:
muçulmanas, judaicas, budistas, tradições africanas como candomblé, indígenas
como o santo Daime. No universo dos cristãos, entre tantas espiritualidades, o
melhor é ficar com a de Jesus.
14-
Qual
era a espiritualidade de Jesus?
15-
A
prova de que Jesus tinha fé é que ele teve crise de fé: “Meu Deus, meu Deus,
por que me abandonaste?” (Mateus 27, 46).
16-
Quantas
vezes não nos sentimos abandonados por Deus! há momentos em que Ele faz um silêncio
insuportável! Foi assim para muitos judeus e cristãos abalados em sua fé
enquanto os fornos crematórios dos campos de concentração consumiam as vítimas
do nazismo. O Deus que despertara em mim a vocação religiosa e me fizera
abandonar a faculdade e a militância estudantil para entrar em um convento, de
repente silenciara. Na obscuridade da noite que se fez em meu espírito, como
Jacó, lutei com o anjo “até surgir a aurora” (Gênesis 32,25-30).
17-
Deus
deixou de ser para mim um conceito para tornar-se uma experiência de amor. Quem
tem a visão direta de Deus não precisa orar: só o faz quem se sente impelido a
aprofundar a sua relação de intimidade com Deus.
18-
Lucas
registra com acuidade os momentos de oração de Jesus: “Ele, porém, permanecia
retirado em lugares desertos e orava” (5,16); “naqueles dias, ele foi à
montanha para orar e passou a noite inteira em oração a Deus” (6,12); “certo
dia, ele orava em particular” (9,18); “ele subiu a montanha para orar” (9,28).
19-
“Jesus
se levantou muito cedo e foi a um lugar deserto para orar” (4,42); subiu ao
monte a passou a noite toda em oração (6,12). Nós, filhos da modernidade, ao
contrário dos povos indígenas, somos escravos do tempo. Trazemos no pulso as
algemas do tempo, dividido em horas, minutos e segundos.
20-
Falamos
de Deus, falamos sobre Deus, rogamos a Deus, suplicamos a Deus... mas não
deixamos Deus falar em nós.
21-
Deus
pertence a esfera da gratuidade.
22-
A
pessoa mais ocupada do mundo haverá de encontrar tempo para o ser amado, ainda
que obrigada a sacrificar o sono e a agenda de trabalho. Claro, nesse caso há
um “retorno”, o sentir-se amado.
23-
Ele
exige, como todo amante, exclusividade. Porém, ao contrário dos amantes, não
nos quer só para Ele. Faz do amor que tem a nós fonte transbordante de amor à
natureza e aos outros. Isso se chama felicidade.
24-
O
temor abre espaço ao amor (Sl 111,10).
25-
Os
místicos de todas as religiões e correntes espirituais ensinam que a oração é
como a relação entre duas pessoas que se amam: do flerte, repleto de indagações
e fascínio, nasce a proximidade.
26-
“Já
não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”.
27-
Se
ele deixasse de amar, deixaria de ser Deus.
28-
Jesus,
paradigma na experiência da fé, convida a todos que o encontram a fazer de Deus
o seu caso de amor. E avisa: os novos tempos não surgem na virada dos séculos
ou dos milênios, mas no coração de quem se converte, muda de rumo, e descobre
que o próximo e o mundo são moradas divinas.
29-
Orar
é entrar em sintonia com Deus. há muitas maneiras de fazê-lo, e não se pode
dizer que esta é melhor que aquela. Há orações individuais ou coletivas,
baseadas em fórmulas ou espontâneas, cantadas ou recitadas, louvor.
30-
Como
num espelho, ao orar vemos o nosso verdadeiro perfil – dobras do egoísmo
realçadas, mágoas acumuladas, inveja entranhada, apegos enrijecidos.
31-
Os
valores elencados como as bem-aventuranças no Sermão da Montanha (Mateus
5,1-12). Ou seja, pureza de coração, desprendimento, fome de justiça,
compaixão, destemor nas perseguições, etc.
AMAR O PRÓXIMO
1-
É
bom recordar o preceito de Jesus que resume todo o conteúdo da Bíblia e a
sabedoria da vida: “Amar o próximo como a si mesmo” (Mateus 22,39). Eis a
essência de todas as religiões e de todas as virtudes.
2-
Quem
é meu próximo? A parábola do bom samaritano (Lucas 10,25-37).
3-
O
próximo é, em especial, aquele cuja carência – material, psíquica ou espiritual
– faz com que modifiquemos o nosso próprio caminho, alteremos a nossa rota,
para dar-lhe atenção e dele cuidar. Foi o que fez o samaritano ao deparar-se
com um desconhecido caído à beira da estrada.
4-
Nossa
capacidade de amar é seletiva. Amamos quem nos ama, agradamos a quem nos
agrada, servimos a quem nos serve. Trata-se de uma questão de empatia,
simpatia, afinidade.
5-
Não
é nada difícil delimitar onde termina o amor e começa o interesse.
6-
O
verdadeiro amor se conhece nos tempos de vacas magras.
7-
Somos
capazes de amar quem nos critica? Ou melhor, recebemos a crítica como ofensa ou
como sinal de amor?
8-
Quem
se recusa a ser solidário corre o risco de ficar solitário.
9-
Há
uma condição para amar: gostar de si! Amar a si mesmo é ser humilde, é cultivar
valores espirituais, sentir-se bem consigo.
10-
O
agir humano deveria consistir em jamais fazer aos outros o que não queremos que
nos façam.
11-
Amar
o inimigo não é suportar calado as ofensas dele, aguentar resignado a opressão,
deixar-se explorar sem protestar. É querer o bem dele, a ponto de ajudá-lo a
deixar de ser arrogante, opressor ou explorador.
12-
O
amor apoia-se em duas pernas: respeito e justiça. Para consigo, os outros, a
natureza e Deus.
REFERÊNCIAS:
BETTO,
Frei. Fome de fé e espiritualidade no
mundo atual. Editora Paralela, 2013. 175p.
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