sábado, 15 de março de 2014

O QUE É ESPIRITUALIDADE?



O QUE É ESPIRITUALIDADE?
Frei Betto

1-    O que é espiritualidade? Eis uma pergunta que fiz a vida toda e ainda paira inquieta em meu coração. É como o nome de Deus, tão vulgarmente pronunciado por nós e, no entanto, impenetrável.
2-    Como é mesmo que Ele se chama? Javé, Eloim, Adonai, Alá, Senhor? Ao conhecer uma pessoa, nossa primeira curiosidade é perguntar seu nome. A segunda, quem é, o que faz.
3-    Segundo Êxodo 3,1-5, foi Javé quem tomou a iniciativa de ir ao encontro de Moisés, enquanto este apascentava o rebanho de Jetro, seu sogro.
4-    Antes de identificar-se pelo nome, Javé preferiu mostrar-lhe seu currículo: “Eu sou o Deus de teus pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó”.
5-    Era um Deus que tinha história, e essa história abrange os patriarcas hebreus: “Eu sou aquele que é”. Puro verbo, ação.
6-    Êxodo 33,19: “Farei passar diante de ti toda a minha beleza”, mas se recusa a mostra-lhe a face. Creio que aqui está a chave da espiritualidade. A beleza é sempre atraente, sedutora, objeto de nossa incessante contemplação.
7-    As palavras moldam a nossa interioridade. Por isso, toda experiência estética é subjetiva. Conhecer a face de Deus é deixar que Aquele “que é” seja em mim.
8-    A espiritualidade constitui o fundamento, a base, a motivação de nossa vida interior, subjetiva. Dentro do cristianismo, existem várias famílias espirituais: pentecostal, carismática, militante... no catolicismo, temos as espiritualidades dominicana, beneditina, franciscana, jesuítica, das filhas de Maria, dos congregados marianos, enfim, uma enorme variedade de tradições ou motivações espirituais, nas quais cada um busca as suas referências. É o poço onde cada um de nós se abastece na vida espiritual.
9-    A espiritualidade é o nosso verdadeiro eu, que muitas vezes não conseguimos vivenciar. Esse, eu, na verdade, é um Outro Eu que está sempre a apontar o rumo certo de nossas vidas. Santo Tomás de Aquino dizia que, quanto penetro minha interioridade em busca de mim mesmo, mais encontro um Outro que não sou eu, mas é ele quem revela o meu verdadeiro eu.
10-    Não se penetra a beleza de Deus impunemente. Antes de passar diante de Moisés, Javé preveniu-o de que haveria de cobrir-lhe os olhos com a palma da mão “até que eu tenha passado. Depois tirarei a palma da mão e me verás pelas costas. Minha face, porém, não se pode ver” (Êxodo 33,22-23).
11-    O profeta Elias “cobriu o rosto com um manto” ao sair da gruta ao encontro de Javé (1º Reis 19,13). No evangelho de Mateus (17,1-3), Jesus, ao transfigurar-se, “o seu rosto resplandeceu como o sol e as suas vestes tornaram-se alvas como a luz”.
12-    É curioso como Mateus encerra o relato: “Erguendo os olhos, não viram ninguém: Jesus estava sozinho”. Não viram Deus, nem Moisés, nem Elias, que tinham desaparecido. Jesus era a face visível de Deus. “Aquele que é” ali estava, o Verbo feito carne. E, diante de Jesus, não se trata de cobrir o rosto, mas de mudar a rota da vida.
13-    Qual deve ser a nossa espiritualidade? Há muitas outras tradições religiosas: muçulmanas, judaicas, budistas, tradições africanas como candomblé, indígenas como o santo Daime. No universo dos cristãos, entre tantas espiritualidades, o melhor é ficar com a de Jesus.
14-    Qual era a espiritualidade de Jesus?
15-    A prova de que Jesus tinha fé é que ele teve crise de fé: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Mateus 27, 46).
16-    Quantas vezes não nos sentimos abandonados por Deus! há momentos em que Ele faz um silêncio insuportável! Foi assim para muitos judeus e cristãos abalados em sua fé enquanto os fornos crematórios dos campos de concentração consumiam as vítimas do nazismo. O Deus que despertara em mim a vocação religiosa e me fizera abandonar a faculdade e a militância estudantil para entrar em um convento, de repente silenciara. Na obscuridade da noite que se fez em meu espírito, como Jacó, lutei com o anjo “até surgir a aurora” (Gênesis 32,25-30).
17-    Deus deixou de ser para mim um conceito para tornar-se uma experiência de amor. Quem tem a visão direta de Deus não precisa orar: só o faz quem se sente impelido a aprofundar a sua relação de intimidade com Deus.
18-    Lucas registra com acuidade os momentos de oração de Jesus: “Ele, porém, permanecia retirado em lugares desertos e orava” (5,16); “naqueles dias, ele foi à montanha para orar e passou a noite inteira em oração a Deus” (6,12); “certo dia, ele orava em particular” (9,18); “ele subiu a montanha para orar” (9,28).
19-    “Jesus se levantou muito cedo e foi a um lugar deserto para orar” (4,42); subiu ao monte a passou a noite toda em oração (6,12). Nós, filhos da modernidade, ao contrário dos povos indígenas, somos escravos do tempo. Trazemos no pulso as algemas do tempo, dividido em horas, minutos e segundos.
20-    Falamos de Deus, falamos sobre Deus, rogamos a Deus, suplicamos a Deus... mas não deixamos Deus falar em nós.
21-    Deus pertence a esfera da gratuidade.
22-    A pessoa mais ocupada do mundo haverá de encontrar tempo para o ser amado, ainda que obrigada a sacrificar o sono e a agenda de trabalho. Claro, nesse caso há um “retorno”, o sentir-se amado.
23-    Ele exige, como todo amante, exclusividade. Porém, ao contrário dos amantes, não nos quer só para Ele. Faz do amor que tem a nós fonte transbordante de amor à natureza e aos outros. Isso se chama felicidade.
24-    O temor abre espaço ao amor (Sl 111,10).
25-    Os místicos de todas as religiões e correntes espirituais ensinam que a oração é como a relação entre duas pessoas que se amam: do flerte, repleto de indagações e fascínio, nasce a proximidade.
26-    “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim”.
27-    Se ele deixasse de amar, deixaria de ser Deus.
28-    Jesus, paradigma na experiência da fé, convida a todos que o encontram a fazer de Deus o seu caso de amor. E avisa: os novos tempos não surgem na virada dos séculos ou dos milênios, mas no coração de quem se converte, muda de rumo, e descobre que o próximo e o mundo são moradas divinas.
29-    Orar é entrar em sintonia com Deus. há muitas maneiras de fazê-lo, e não se pode dizer que esta é melhor que aquela. Há orações individuais ou coletivas, baseadas em fórmulas ou espontâneas, cantadas ou recitadas, louvor.
30-    Como num espelho, ao orar vemos o nosso verdadeiro perfil – dobras do egoísmo realçadas, mágoas acumuladas, inveja entranhada, apegos enrijecidos.
31-    Os valores elencados como as bem-aventuranças no Sermão da Montanha (Mateus 5,1-12). Ou seja, pureza de coração, desprendimento, fome de justiça, compaixão, destemor nas perseguições, etc.


AMAR O PRÓXIMO

1-    É bom recordar o preceito de Jesus que resume todo o conteúdo da Bíblia e a sabedoria da vida: “Amar o próximo como a si mesmo” (Mateus 22,39). Eis a essência de todas as religiões e de todas as virtudes.
2-    Quem é meu próximo? A parábola do bom samaritano (Lucas 10,25-37).
3-    O próximo é, em especial, aquele cuja carência – material, psíquica ou espiritual – faz com que modifiquemos o nosso próprio caminho, alteremos a nossa rota, para dar-lhe atenção e dele cuidar. Foi o que fez o samaritano ao deparar-se com um desconhecido caído à beira da estrada.
4-    Nossa capacidade de amar é seletiva. Amamos quem nos ama, agradamos a quem nos agrada, servimos a quem nos serve. Trata-se de uma questão de empatia, simpatia, afinidade.
5-    Não é nada difícil delimitar onde termina o amor e começa o interesse.
6-    O verdadeiro amor se conhece nos tempos de vacas magras.
7-    Somos capazes de amar quem nos critica? Ou melhor, recebemos a crítica como ofensa ou como sinal de amor?
8-    Quem se recusa a ser solidário corre o risco de ficar solitário.
9-    Há uma condição para amar: gostar de si! Amar a si mesmo é ser humilde, é cultivar valores espirituais, sentir-se bem consigo.
10-    O agir humano deveria consistir em jamais fazer aos outros o que não queremos que nos façam.
11-    Amar o inimigo não é suportar calado as ofensas dele, aguentar resignado a opressão, deixar-se explorar sem protestar. É querer o bem dele, a ponto de ajudá-lo a deixar de ser arrogante, opressor ou explorador.
12-    O amor apoia-se em duas pernas: respeito e justiça. Para consigo, os outros, a natureza e Deus.


REFERÊNCIAS:

BETTO, Frei. Fome de fé e espiritualidade no mundo atual. Editora Paralela, 2013. 175p. 




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